segunda-feira, 7 de março de 2016

Um Banquete

Um Banquete
(por João Araújo)

O banquete vai ser servido mas, antes, é necessário o seu preparo delicado. Não há festejos, nem solenidades... não há sorrisos... não há nem a regalia das aparências... Onde andará o amphitryon de Molière? Chamem a moça que ficou de vir de vestido longo... e era vermelho... Convites sofisticados em alto-relevo, idades doiradas, batons, pós-de-arroz, jóias e encantos… sumiram todos... Todos não é tudo... As idades pararam... Mas que raio de banquete é este?! Só há um convidado: a preparar tudo, a receber-se, a cumprimentar-se... Corram! Corram! Os criados esqueceram de acender as luzes dos salões! Mas que salões e criados o quê, se nem o singular deu a cara ainda!?... Os holofotes não escusam por esconderem as sombras... A cozinha é fria, a torneira roda, a água cai, a panela enche. Tragam-me da dispensa, um pouco do requinte dos temperos finos e iguarias do Oriente. A governanta conseguiu retornar de Champagne com a lista das compras? Nem a lista, nem as compras... Quem escreveu o quê? E as ovas do esturjão? Onde estão? Nem no chão... Não, parece que ela preferiu ir para Milão... Mas que diacho de banquete é este?! A água é fria, o fogo acende, o metal esquenta. Menina, você é novata: arrume esse uniforme e preste atenção nos mais antigos! Onde está toda a gente? Ela vai ver e rir? Senhor maître, vai querer quantos tipos de canapés? Não importa, o sabor muda de acordo com a esperança... Ponham para gelar as garrafas de vinho das melhores castas. Onde estão todas elas? O salão e as mesas já brilham, de se perderem nas vistas... Está tudo posto como rege a etiqueta, como manda o figurino: colheres, garfos, facas e o cristal das taças sem as marcas dos dedos... Está tudo perdido das vistas... Toda a gente nos seus postos? Para quê? Ela vai ver e rir? E se essa gente tiver medo das suas dores amanhã? Toda a gente? Ela vai ver e rir... Aquele enólogo vai aprovar esse bouquet estupendo e a gente toda vai se perfumar... A gente?! Mas que gente?! A gente vai ver e rir? Se eles tiverem medo da dor, vai alterar o sabor dos canapés... Corram! Avisem a todos sobre as esperanças! Mandem eles virem com as promessas debaixo do braço, além do traje a rigor. Onde está ver e rir? Mas que diabo de banquete é este?! Ajeitem essas gravatas-borboleta. Os portões já estão abertos? Vão abrir urgente, o Tempo pode ser o primeiro a chegar... O fogo insiste, o metal conduz, a água aquece. E se aquela dama estiver com dificuldades com o itinerário? Essa ansiedade, essa expectativa... Isso pode lhe alterar o perfume do vinho... Só há um anfitrião: a sorrir-se, a abraçar-se, a beijar-se... Ao menos os risos forçados ainda se sustentam... Até quando?... Onde ela foi ver e rir? Mordomo Alex! Mordomo Petrius! Tomem tento nos convidados! Poderia ter sido Charles... Madame, oh-ho-ho-hos... Mademoiselle, ih-hi-hi-his... Sintomas de alegrias... Monsieur, com-licenças, eu-peço-desculpas, ah-ha-ha-has, eh-he-he-hes, obrigadinhos pra lá, muitos-prazeres pra cá. Onde estão as vozes, os burburinhos, os cochichos?!... Por falar em prazeres, o que é melhor mesmo: a esperança ou o temor? E se ela pedir para ir ao toilette? Onde ela vai? Onde ela foi? Ver e rir? Um banquete de um homem só... Que danado de banquete é este, meu Deus?! Acho que o bacalhau ficou um pouco salgado... Sonha com um futuro agradável que melhora... A senhorita aceita uma dose de licor? Mas se eu nem participei da ceia ainda... Tudo tem a sua primeira vez... Está bem, vou aceitar só um pouquinho, porque o senhor sabe que eu não estou aqui, não é mesmo?... Só há uma pessoa: a servir-se, a conversar-se, a desconhecer-se... Já o salmão ficou insosso... Nesse caso, cessa a dor que ele vai ficar no ponto. Mas qual delas? Não aprendeu ainda? A maior é claro! Quanto maior a dor estancada, maior o prazer; mas vai logo, pois não dá para aguentar por muito tempo... E o vermelho do vestido? Já chegou? Vermelho é a cor mais rápida! Pelo menos isso: era a promessa que faltava para dar gosto às perdizes... Nos convites indicavam que era para os senhores virem de smokings... Mas e se os Smokings chegarem primeiro? Manda aguardarem no Bar e serve um aperitivo... Quem sabe, com a espera, eles não se transformem no vestido vermelho?... A água recebe, a temperatura aumenta, a matéria agita. Nesse caso, é melhor contabilizar quantas esperanças e quantos temores ainda temos para condimentar o restante dos pratos principais. Não há problemas, os convidados trazem de sobra. Olá, como vai? Caríssimos... Lindinhas... Minhas senhoras... Meus senhores... Seria quase: Respeitável Público! Ladies and Gentlemen! Isso já é exagero... Que banquete medonho é este, meu Deus?! E os irmãos Verri? Confirmaram presença? Não sei se vão tomar champagne... Seja o que for, que tragam as esperanças... Cozinheiras e garçons atentos, ouvi um ruído!... Deve ter sido o amarelo do vestido... Violinos, violas, cellos, sutilezas sonoras: le Orchestre… Os músicos chegaram? E a moça? Está longa e vermelha… Ah, certo, a espera dela... Não, a música... Dela?... O temor vem de black-tie... Isso já sabíamos... Já avisei para tomar cuidado com os singurales da vida... A moça já envelheceu... Ver? Rir? Já não se sabe... Ninguém veio ver e rir... Ninguém vem, venho Eu... Será um banquete de misantropos? Eu só mais Eu... Eu sou Maiseu. Já é alguma coisa. Le misanthrope. Agora sin, de singular… Sim, mas diga quantas eram as esperanças mesmo? Não sei. Poquelin de novo? Nem isso… Só sei que a soma de todas as dores é muito maior do que a dos prazeres. Mas é tanto assim?... Aí você já está querendo saber demais... Pergunta a eles... A matéria ferve, o vapor se espalha, a água borbulha. Eles quem? Os convidados que não existem. Meu Deus! Que banquete!? Droga, me queimei...
MENSÃO HONROSA NO CONCURSO NACIONAL DE CONTOS
MIGUEL SANCHES NETO” EDIÇÃO 2011 - CATEGORIA NACIONAL

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Veja Links para matérias de João Araújo:

- Um itinerário crítico para o imaginário de Mafalda Veiga:
Decomposição de um cancioneiro através da imaginação da matéria
in Germina - Revista de Literatura e Arte. (link para o artigo)