Crônicas e Artigos Opinião

O Mestre que Tocava pelo Avesso



Talvez o seu sorriso puro de criança nunca se tenha deixado abalar. Ele o tinha como uma marca inconfundível. Esse jeito alegre que parece existir mais presentemente no povo nordestino brasileiro e que, às vezes, é até mal interpretado pelas pessoas. A semente de uma resistente alegria chama a atenção de muita gente e mesmo outros nordestinos se questionam sobre tal feição. Francisco Soares de Araújo era assim. Paraibano de Princesa Isabel, carregou consigo uma simplicidade ao sorrir, entre os altos e baixos que o destino lhe impôs. Poucos brasileiros conheceram a arte do menino Francisco de quem falamos. É uma pena. Parece que estamos vendo aquela criança bulinando na viola do pai, na aurora da vida, diante do espelho desnecessário, teimando por inverter o instrumento e tocá-lo pelo avesso. Teimando por inventar novas saídas, novos truques. Teimando por criar novos atalhos para o violão. Naquela brincadeira séria, nascia a semente inventiva de um virtuoso músico e compositor. Abria-se um caminho incomum de execução e criação para esse instrumento que já é tão difícil de se tocar pelos destros.

Essa inversão do violão o batizou de Canhoto da Paraíba. Mais tarde, veio se radicar em Recife. Dentre as suas aventuras, há a viagem que fez, ao fim da década de 1950, até o Rio de Janeiro, num jipe, junto com outros músicos. Em Jacarepaguá, conheceu Jacob do Bandolim e Radamés Gnatalli e também foi influência artística de novas gerações, a exemplo de Paulinho da Viola. E lá esteve o seu sorriso cativante, ao tocar de forma precisa e espantosa os seus choros com sotaque nordestino. A união entre a sua habilidade e o seu carisma virariam tema nas conversas entre aqueles músicos. E não só. Ao retornar ao Recife, sua simpatia e talento entre os colegas já era comum, o que lhe renderam parcerias em gravações musicais. Podemos citar como registros de sua produção, alguns LPs entre os quais “Único Amor”, “Canhoto a Mais de Mil”, “O Violão Brasileiro Tocado pelo Avesso” e “Pisando em Brasa”. Alguns desses frutos contaram com as participações valiosas de Rafael Rabello, Henrique Annes e Bozó, dentre outros.

Infelizmente, ao fim da década de 1990, Francisco Soares viria sofrer uma isquemia cerebral, paralisando o lado esquerdo do corpo e a trajetória de Canhoto da Paraíba. A partir desse acontecido, algumas vezes, vários artistas fizeram apresentações em sua homenagem, com o intuito de angariar fundos para auxiliar no seu tratamento. Foi bonito e único ver juntos Dino Sete Cordas, Paulinho da Viola, Época de Ouro, Pingo de Ouro, Bozó, Henrique Annes, Dalva Torres e Os Quatro Boêmios, Cláudio Almeida, Jeovah da Gaita, Conjunto Pernambucano de Choro, Nenéo Liberalquino e outros, mas desejaríamos que aqueles encontros inesquecíveis pudessem nunca ter tido o seu real motivo de realização. Sabemos que alguns admiradores anônimos também visitavam Canhoto em Paulista, onde residia. Mesmo com as claras dificuldades em que se encontrava, parecia que o menino Francisco ainda sorria, vez em quando. Ainda sonhava tocando pelo avesso o seu instrumento do coração. Francisco Soares, inesquecível músico para poucos, faleceu nesses últimos dias de abril de 2008. Adeus, Mestre, carismático Curinguinha, amigo Canhoto cordão... Talvez o seu sorriso puro de criança nunca se tenha deixado abalar...

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Lirismo e Fraternidade: a Evolução dos Blocos*

É sabido que o diálogo antagônico sempre esteve presente no carnaval, a exemplo das disputas entre os Clubes no início do século XX que, ao se cruzarem na virada das esquinas recifenses, travavam verdadeiras batalhas, onde o vencedor, resumidamente, seria aquele que conseguisse “furar” o surdo do oponente, roubando-lhe, assim, a força da sua marcação. Porém, queremos nos deter, aqui, no lado fraterno que os Blocos Líricos vêm hoje trabalhando de uma forma muito espontânea. Esse sentimento de preservação do termo “amizade” passeia por essas agremiações em vários níveis. Dentre as várias temáticas dos frevo-de-bloco, das quais podemos ter uma idéia geral analítica através do livro “Panorama de Folião” de Júlio Vilanova, está aquela que chamaremos de temática de louvor, na qual o compositor, de forma muito poética, evoca as agremiações queridas. Foi com essas qualidades que o compositor Bia Assunção levou o 1º Lugar no gênero frevo-de-bloco do Concurso de Música Carnavalesca Pernambucana 2006/2007 com a composição “Inocente” cujos versos convidam: “vem minha gente, vem ver o Esperança exaltar o Inocente”.

Também há uma cordialidade e respeito que vagueiam nas festas produzidas por algumas das agremiações atuais. Uma passagem exemplar foi a do Bloco Pierrot de São José que, ao comemorar os seus 30 anos de lirismo neste ano, convidou os Blocos Batutas de São José, Cordas e Retalhos e Um Bloco em Poesia para os homenagear e festejarem conjuntamente esta data tão importante. Esse carinho também se manifesta quando uma agremiação resolve homenagear uma personalidade da nossa cultura em seus acertos-de-marca. Citemos casos dessas celebrações honrosas com Um Bloco em Poesia que, desde a sua fundação, recebe anualmente uma personalidade e entrega-lhe o laurel no palco do Marco Zero, sempre na segunda-feira de Carnaval. Foi assim que esta agremiação abraçou, naquele palco, Ariano Suassuna (Literatura); Reinaldo Oliveira, Aldemar Paiva e Leda Alves (Teatro); Miriam Leite, Hugo Martins, Renato Phaelante e Ivan Ferraz (Rádio) e António Carlos Nóbrega (Cavalo Marinho). A festa de 2008 promete o mesmo esplendor e encanto com o enaltecimento ao talento indiscutível do compositor e poeta Getúlio Cavalcanti, que será homenageado em vários momentos.

Outro nível dessa expressão de fraternidade entre os Blocos Líricos decorre das suas uniões para concretizarem um mesmo projeto. Desta feita, Um Bloco em Poesia e o Cordas e Retalhos produziram uma série de seis edições de “O FLABELO - Jornal Informativo dos Blocos Líricos de Pernambuco”, divulgando informações valiosas sobre a história e os eventos que ocorriam no meio. Citamos também a nossa publicação do livro “A Commedia dell´Arte no Lirismo do Carnaval de Pernambuco”, onde tentamos criar uma representação bibliográfica da coletividade comum aos Blocos, ao convidarmos dez personalidades para abrirem os capítulos do referido volume.

É assim que os Blocos Líricos vão preservando este valor imprescindível para a humanidade, o que não poderia ser diferente já que, como é notório, as suas origens partiram do núcleo familiar. Parece, desta forma, que os Blocos têm cumprido o que bem disse o boêmio Pedro Dueire, ao afirmar que no carnaval “não se consegue individualizar as pessoas ou as coisas, a homogeneidade faz de cada parte um todo e, pelo menos naqueles instantes, o reinado da alegria impera com toda majestade”.

* Artigo publicado no Diário de Pernambuco de 22 de janeiro de 2008,
no âmbito das comemorações carnavalescas deste ano.
Recife/Pernambuco/Brasil.

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Forrobodó com Sustança e Qualidade




Baile popular, arrasta-pé, festança: estes são alguns significados da palavra forrobodó. Elemento essencial, creio, para compor uma reunião deste tipo e proporcionar uma noite cheia de muita animação, é a música. A música incendeia a alma, contagia o sangue e deságua na suadeira das pernas e braços pelos salões. Sem perder a seriedade, o povo nordestino tem disso: é uma gente alegre, de festa, de dança e, claro, de muita música. Foi com esse espírito que tive a oportunidade de apreciar, em primeiríssima mão, o recente CD de Luciano Magno intitulado “Forrobodó”.

Novinho em folha, o trabalho mostra uma outra qualidade de um artista que já trilhou longa estrada como músico, compositor, arranjador e produtor. Desta vez, Luciano Magno ataca de cantor: uma faceta que trouxe ótima surpresa e já deveria ter sido explorada anteriormente. Digo isso porque o resultado obtido revela um timbre vocal seguro, com identidade própria e marcante, mostrando que veio para ficar.




A voz de Luciano Magno desponta no cenário da música popular nordestina, encontrando expressão num CD de elevado nível técnico. Não podia ser diferente, já que as origens do autor são de virtuosismo como músico. É um caso de qualidade garantida. As faixas, muito bem arranjadas, misturadas e masterizadas, possuem vários momentos de solos e contrapontos instrumentais de sanfona, viola, guitarra, flauta e de falsetes que o próprio Luciano vai desenhando oportunamente com a voz.

A música título do CD faz jus ao clima quente e balançado do forró. Um outro achado musical do disco é o arrasta-pé “Por Amor”. A letra desta composição leva-nos a uma viagem mundo afora, por lugares como Pequim e Irã, tão em voga nas relações internacionais da atualidade. Tiradas deste tipo fazem parte da criatividade dos compositores nordestinos que, desde Luiz Gonzaga, encontram asas para falar do cotidiano, utilizando-se de formas jocosas e inteligentes. Quem não se lembra do Rei do Baião cantando “Ontem eu sonhei que estava em Moscou dançando pagode russo”?

Gravado pela Polydisc, o CD ainda conta com um convidado especial de peso: André Rio, que divide com Luciano a faixa “Violas”. O disco explora também a via mais romântica do xote, a exemplo das faixas “Pra ver você” e “Indiferença” que proporcionam todo o clima necessário para se dançar agarradinho o dois-pra-lá-dois-prá-cá que os casais esperam conduzir, ansiosamente, até altas horas da madrugada.

O CD de Luciano Magno fecha com a faixa “Pé-de-bode”, uma composição originariamente instrumental que recebeu, depois, letra de André Rio. Em “Forrobodó”, “Pé-de-bode” ganhou uma releitura mesclada: segue com um arranjo instrumental, mas tem a participação de um coral que faz sutil referência à versão em letra.

Tudo isto serve para criar uma saborosa festança musical imprescindível à emergente época junina. 

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Quando o Galo Canta, o Mundo Escuta


Lisboa, sexta-feira, 01 de maio de 2009. Por volta das duas da madruga. Abro os olhos. Talvez um ruído qualquer. Sigo até à cozinha para um copo d’água. Depois do segundo gole, uma parada para a sonâmbula reflexão. A vista focada no galinho de Barcelos, agarrado à geladeira pelo imã. Azulado galo, salpicos de cores, talvez pétalas, amarelas, vermelhas, esverdeadas. O galinho de Barcelos vira-se para mim, sorri e diz: «O que tu queres sei eu?». Eu lhe respondo: «Pequeno amigo, o que há para saber?». O bichinho parece sussurrar histórias de um além-tempo do reinado ibérico. Conta-me que, certa vez, um homem fora condenado à morte e tinha a decisão irrevogável. No dia da sua execução, o pobre destinado implorou pelo seu último desejo: uma derradeira conversa com o juiz da sentença. Na hora do almoço, foi levado até o homem da lei. O condenado jura-lhe inocência, mais uma vez. Numa última investida, o homem roga, como prova da verdade de suas declarações, que aquele galo sobre a mesa (a refeição do pretor), levante-se a cantar. Foi o que ocorreu. O homem livrou-se da sentença. A lenda passou-se na cidade de Barcelos, Portugal, e batizou o galinho que agora adornava a minha geladeira. Tornou-se um símbolo da fé do seu povo.


Depois de escutá-lo, eu disse ao galinho de Barcelos: «amigo, eu também tenho uma história de além-mar para lhe contar. Também é uma história de Galo e uma pequena parte dela acontece no paradoxo simultâneo do agora e do ontem». O galinho arregalou os olhos, atentamente. Prossegui, dizendo-lhe que o fato se passa no reino real da cidade do Recife. Disse-lhe que lá não existe pressa. Lá, ainda era ontem. Disse-lhe que, um dia, da paixão de um homem chamado Enéas, foi capaz de jorrar, aos quatro cantos do mundo, os (en)cantos gigantes de um Galo. Em pouco tempo, tornou-se o maior galo do mundo. Batizado o Galo da Madrugada, continuava a cantar de manhã, de tarde e de noite, distribuindo alegria para o seu povo. Naquele exato momento, a Quinta do Galo reunia festejo monumental em torno de personalidades brilhantes.

Assim, eu disse ao meu amigo de Barcelos: «Façamos silêncio. Tentemos escutar». Ficamos pasmos. Não, naquele instante nós não escutamos canto de galo algum. A sensação inexplicável advinha da sonoridade que atravessava o mar. Canções entoadas nas vozes de arautos do frevo, como André Rio, Gustavo Travassos, Nena Queiroga, Almir Rouche e Marron Brasileiro. Melodias múltiplas e diversificadas conduzidas por um maestro chamado Spok. Aquela fé continuava além do tempo, do espaço e da época carnavalesca. Pela direção do som, calculei que a música vinha da Sede do Galo, no Recife, às dez da noite. O galinho de Barcelos ficou sem palavras. Eu o olhei com carinho e disse-lhe: «camarada, temos histórias de fé e de cantos em comum». O Canto do Galo da Madrugada preenche milhões de corações com sua poderosa alegria. O talento e a fé daqueles estimáveis artistas salvam-nos da solidão. Naquele momento eu era mais um dos que fora brindados com tal fortuna.

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Pandeiro – o Instrumento que Acompanha
as Batidas do Coração*


Meu pandeiro brasileiro... Olhando a sua árvore genealógica, observo que esse pequenino instrumento, hoje um dos grandes símbolos da cultura popular brasileira, é da família dos membranófonos e referências remotas suas podem ser encontradas já nas escrituras sagradas (I Samuel, 18:6). Derivado do tambor, o pandeiro persegue o homem ao longo da sua odisséia de utilização das habilidades manuais, essa faculdade libertadora que, sob o comando do cérebro, ajudou-nos a modelar o mundo peculiar ao nosso redor. A percussão acompanha o homem, das festividades sagradas às profanas, em sinais de luto ou de júbilo, desde os povos mais antigos como os fenícios e egípcios.

Também temos o adulfe como integrante desta família, espécie de pandeiro quadrado, com membrana bilateral, geralmente adornado com fitas e sem platinelas (aquelas pequenas placas cromadas ou niqueladas de latão ou bronze que produzem o som metálico do instrumento). A partir da Idade Média, na Europa, adulfes, pandeiretas e pandeirolas difundiram-se através dos toques dos artistas ambulantes, sendo utilizados em festas folclóricas pela Itália, Espanha e Portugal, até darem entrada no ambiente da Côrte e integrarem-se às orquestras.



A migração portuguesa para o Brasil traria consigo a tradição das procissões, pastoris e, consequentemente, os primeiros registros de utilização do pandeiro em meados do século XVI, em celebrações de Corpus Christi. Assim, instala-se o pandeiro que, juntamente com as manifestações africanas, foi sendo utilizado e modificado até ganhar identidade nacional com a MPB e uma forma muito especial de execução. Hoje, o leque de ritmos que o instrumento abarca é imenso, tendo-se fixado como referência desde o samba, o choro e o frevo, até ritmos menos convencionais como o funk.

No Nordeste nasceu um dos maiores ritmistas, o paraibano Jackson do Pandeiro, que se radicou em Pernambuco e fez nome com suas levadas, toques e batuques no forró. Cada instrumentista tem os seus truques, mandingas e façanhas singulares de expressão manual, que dão o molho rítmico e contagiante necessários para a música. Pondo-se à parte a fabricação em série, igualmente especial é a forma de fabrico artesanal do instrumento: cada artesão com suas técnicas de tratar a madeira, parafusá-la, envernizá-la, além da escolha do couro de cabra para se extrair o desejável som grave veludoso. Nesta linha de manufatura meticulosa, podemos citar os nomes de Aluízio de Fortaleza, Lanka de Campina Grande e Chico Nunes do Recife.

E ao aportarmos na capital pernambucana, podemos finalizar este texto, destacando alguns pandeiristas que se dedicaram no desvendar dos segredos do pandeiro, ainda que isso nos custe a injustiça de omissão de nomes importantes. Entre vários deles, encontramos desenvoltura e destaque, por exemplo, nos percussionistas Lula do Pandeiro, Xaruto, Walmir Chagas (ator), Mamão, George, Gilberto Campello (do grupo Sa grama) e Tadeu dos Santos (da Orquestra Retratos do Nordeste). Aqui fica a nossa homenagem singela, “in memoriam”, a quatro grandes referências em nosso Estado, na arte do toque do pandeiro e para os quais este texto é dedicado: os mestres Maciel, Galego do Pandeiro, Cosme e Aluízio do Pandeiro.


*Artigo publicado no DIÁRIO DE PERNAMBUCO de 26 de setembro de 2007.


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Ciência e Arte: uma mistura criativa*

Ciência e Arte, separadamente, são campos do conhecimento onde sempre se pôde testemunhar os frutos mais surpreendentes colhidos da criatividade humana. Separadamente? Será que é mesmo assim? Nem sempre... Pesquisas atuais(1) na área da Psicologia da Criatividade têm indicado que a polimatia é uma característica importante nas pessoas bem sucedidas nas pesquisas e produções tanto artísticas, quanto científicas.

Olhemos mais de perto esta palavra pouco usual. Polimatia vem de uma composição do grego polýs, muito, + mathein, aprender. Assim, podemos compreendê-la em termos de uma pessoa com instrução e cultura extensa e variada. Segundo um dos inventores da Mecânica Quântica, o físico Max Plank, que também tocava piano, o cientista pioneiro deve ter uma [...] imaginação artisticamente criativa(2).

Os estudos em que nos baseamos têm sido realizados por Bernstein que, dentre as várias linhas de análise, sugere a observação das publicações dos membros daNational Academy of Sciences (USA). Os resultados revelaram que aqueles cientistas que estariam mais envolvidos com hobbies artísticos, tinham probabilidade maior de alcançar eminência na Ciência e estavam no topo das citações.

Mas não precisamos apenas avaliar dados recentes da Psicologia para verificarmos a importância desta união. Se voltarmos o nosso olhar para a História, encontramos provas de que a polimatia rendeu bons frutos para a humanidade, a exemplo do longo e rico período renascentista.

Os maiores mestres daquele tempo de redescoberta e utilização de virtudes, aptidões, saberes e culturas antigas, ainda hoje nos enchem de orgulho. Só para relembrar dois casos exemplares de erudição ampla que nos marcaram, temos Michelangelo di Ludovico, que foi pintor, escultor, poeta e arquiteto, e Leonardo da Vinci, que com as suas habilidades polímatas destacou-se no ramo da Pintura, Arquitetura, Engenharia, Ciência, Escultura, além de também ter aprendido Ótica, Perspectiva, Música e Botânica.

Assim, agora quando pensarmos em polimatia, recordamos os grandes mestres do passado e podemos sempre tentar buscar e reinvindicar por uma pedagogia atual que tenha suas bases sustentadas na variedade dos saberes.

*Artigo publicado no DIÁRIO DE PERNAMBUCO de 31 de agosto de 2007

(1) ROOT-BERNSTEIN, Robert and ROOT-BERNSTEIN, Michele. Artistic Scientists and Scientific Artists: The Link Between Polymathy and Creativity. In AAVV. [2004]. Creativity – From Potencial to Realization, pp. 127-151. Edited by Robert J. Sternberg, Elena L. Grigorenko and Jerone L. Singer. Washington: APA.


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Dalva Torres – a energia e a alma de uma voz



Não tenho dúvidas de que ela nasceu para a música e realmente canta com a alma. O diafragma treinado, o balé vibrante das cordas vocais, as notas exatas suaves ou enérgicas, emergindo lá do fundo do peito, à ponta da língua... Essa paixão nos olhos e na voz, pelas nossas coisas, o nosso cancioneiro único e especial, do frevo, do samba, do choro, das raízes nordestinas, nessa alameda musical imponente que mistura o canto das três raças, como diria Paulo César Pinheiro. A presença do seu [en]canto nas noites pernambucanas, certamente já foi responsável por luares diferenciados, provocando inevitáveis arrepios na pele, ou lágrimas incontidas, ou calores no peito. É Dalva Torres de “Benzinho” de Jacob do Bandolim, de “Doce de Coco” de Hermínio Bello de Carvalho, de “Cinema Mudo” de Rossini Ferreira e Ana Ivo, de “Beatriz” de Nuca, de “Frevo Nº 1 do Recife” de Antônio Maria... e mais de Capiba, de João Pernambuco de Canhoto da Paraíba, de... Essas canções apaixonadas de forte expressão da alma e que são representações musicais da cor de vinho e da temperatura quente do nosso sangue.

O contato dessa pernambucana de Moreno com a Música, vem de berço. Ao longo da vida, com muita dedicação e trabalho, foi aprimorando e estreitando a intimidade com os sons, esse “falar” através das notas, esse dialeto colorido das tonalidades, essa linguagem e expressão melódica universal. Recordo um encontro recente que tivemos em Lisboa e, ao lhe mostrar uma composição minha inédita, ela logo agarrou uma folha qualquer e tracejou cinco linhas de um pentagrama improvisado, para transcrever as notas do meu solfejo rústico e inseguro. Esse seu ouvido absoluto é um companheiro leal e um trunfo importante na sua musicalidade.

Dalva Torres já concretizou tantos projetos artísticos que o espaço torna-se curto para contar. Recordo, pontualmente, suas participações no “Projeto Pixinguinha” ao lado de Elizeth Cardoso, seu prêmio de melhor intérprete no “Festival Canta Nordeste de 1991”, suas gravações sobre Ismael Silva e Antônio Maria, seu prêmio no “Festival da Música Carnavalesca de 2007”. Em cada apresentação, em cada projeto, testemunha-se uma clara entrega sua completa e única; em cada ano há uma novidade, uma surpresa que mais que justificam sua luta e contribuição para o enriquecimento da música popular, seja como produtora de novos trabalhos, seja como arranjadora musical, como compositora, como regente de orquestra, como cantora, como artista ampla que é.

Nos últimos anos, produziu uma série de CDs independentes, bem como tem realizado seletas e refinadas apresentações em palcos diversos. Além disso, desenvolve, anualmente, um trabalho criterioso à frente da Orquestra de Pau-e-Corda de “Um Bloco em Poesia”, do qual é fundadora (a partir de janeiro de 2008, ocorrerão vários desses eventos no Círculo Militar do Recife). Entretanto, há um projeto seu, em gestação silenciosa. Um projeto sendo preparado com a paixão e a energia que só a alma densa feminina tem. Um projeto que tocará no espírito de quem ouvir. É um projeto muito especial e que todos poderão conferir. Eis, aqui, o meu humilde canto de ansiosa espera: Voa fogo! Ferve mar! Voz sanguínea dia e noite... És uma Lua-Solar, domando o touro infernal... Tudo urra em desespero... Mas tu urras lindamente... Mas tu urras melodiosa... Tu solfejas imortal...


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As Sete Cordas Iluminadas de Bozó


A música de qualidade não deve ser distinguida pelo gênero. A qualidade pode estar presente tanto num baião ou frevo, quanto numa ópera. Afinidade é uma coisa diferente de discriminação e, para não discriminar, é preciso reconhecer pelo menos uma boa parcela das nuances sonoras que coexistem numa faixa mixada em CD. Foi nesse critério do qualitativo que o arranjador, regente e músico Ewerton Brandão escolheu trilhar o seu caminho ao longo de anos de uma carreira diversificada e produtiva. Mais conhecido como Bozó do 7 Cordas, esse violonista recifense colocou o seu talento meticuloso a serviço da MPB, dando especial tratamento aos ritmos regionais que acabaram por ganhar realce, enlevando, assim, os seus fiéis apreciadores.

Comecemos frizando o caso do frevo. Há uns 10 anos, Bozó foi responsável pela criação do Bloco Sinfônico. Tratou-se de um projeto em que a música regional (daí o termo “Bloco”) era orquestrada de uma forma não convencional (o “Sinfônico”). O conceito central era sustentado em arranjos inovadores que criavam condições tímbricas fugidias aos padrões, mas sem perder o carácter popular. No rol da instrumentação atípica utilizada estavam a trompa-de-harmonia e o fagote. Um outro caso exemplar ocorreu no ano de 2004, quando Bozó foi convidado para produzir o CD comemorativo dos 30 anos do Bloco da Saudade. Aqui podemos dar especial relevo a dois fonogramas neste trabalho, ambos de autoria de Edgard Moraes. A releitura inovadora conduzida em “Ao Som do Violão” traz um 7 cordas (Bozó) fazendo, além do baixo, vários efeitos percussivos (caixa e surdo). Para os contrapontos e harmonização, Bozó convidou um trio de violões composto por Marcone Pedro, Aristide Rosa e Gleidson Gregório. Já em “A Vida é um Carnaval” o resultado atingido é da ordem das emoções preciosas. Na primeira parte desta música foi feita uma adaptação com cordas dedilhadas (bandolim, cavaquinho, banjo e 7 cordas) dando suporte à interpretação impecável de Naná Moraes.


Esse tipo de postura diferenciada, ao abordar um gênero como o frevo, acessa consequentemente o plano universal. Se para muitos o frevo é uma música sazonal, um trabalho como o de Bozó contradiz essa regra. Sua capacidade de alargar os horizontes regionais vem de uma carreira mesclada em experiências mundo afora. Bozó já ilustrou belas páginas sonoras em CDs como os das serestas de Carlos José, Trio Iraktan (presença singular na música “Chão de Estrelas”), Gonzaga Leal (arranjo de uma faixa com a participação de Alaíde Costa), Luiz Airão (fazendo o cavaco no CD dos 20 Sucessos), Dalva Torres (CD “Ao amor, onde o amor foi demais”) e tantos outros.


Soma-se também a esse histórico de produções ecléticas, o gênero forró. A esse propósito, Bozó encontra-se com a agenda preenchida de apresentações que fará com a sua Banda “Lampiões e Maria Bonita”, com o Forró de Ivan Ferraz e com a divulgação do CD “Luz do Baião” de Cláudio Rabeca. Neste último, Bozó foi responsável por arranjos que colocam a rabeca numa posição solista de destaque, enfeixando diálogos ricos com sanfona, flauta, clarinete e, claro, o seu tão iluminado violão de 7 cordas.

Outros Contatos

Veja Links para matérias de João Araújo:

- Um itinerário crítico para o imaginário de Mafalda Veiga:
Decomposição de um cancioneiro através da imaginação da matéria
in Germina - Revista de Literatura e Arte. (link para o artigo)