Um
Banquete
(por João
Araújo)
O banquete vai ser servido mas, antes, é necessário o seu preparo
delicado. Não há festejos, nem solenidades... não há sorrisos...
não há nem a regalia das aparências... Onde andará o amphitryon
de Molière? Chamem a moça que ficou de vir de vestido longo... e
era vermelho... Convites sofisticados em alto-relevo, idades
doiradas, batons, pós-de-arroz, jóias e encantos… sumiram
todos... Todos não é tudo... As idades pararam... Mas que raio de
banquete é este?! Só há um convidado: a preparar tudo, a
receber-se, a cumprimentar-se... Corram! Corram! Os criados
esqueceram de acender as luzes dos salões! Mas que salões e criados
o quê, se nem o singular deu a cara ainda!?... Os holofotes não
escusam por esconderem as sombras... A cozinha é fria, a torneira
roda, a água cai, a panela enche. Tragam-me da dispensa, um
pouco do requinte dos temperos finos e iguarias do Oriente. A
governanta conseguiu retornar de Champagne com a lista das compras?
Nem a lista, nem as compras... Quem escreveu o quê? E as ovas do
esturjão? Onde estão? Nem no chão... Não, parece que ela preferiu
ir para Milão... Mas que diacho de banquete é este?! A água é
fria, o fogo acende, o metal esquenta. Menina, você é novata:
arrume esse uniforme e preste atenção nos mais antigos! Onde está
toda a gente? Ela vai ver e rir? Senhor maître, vai querer
quantos tipos de canapés? Não importa, o sabor muda de acordo com a
esperança... Ponham para gelar as garrafas de vinho das melhores
castas. Onde estão todas elas? O salão e as mesas já brilham, de
se perderem nas vistas... Está tudo posto como rege a etiqueta, como
manda o figurino: colheres, garfos, facas e o cristal das taças sem
as marcas dos dedos... Está tudo perdido das vistas... Toda a gente
nos seus postos? Para quê? Ela vai ver e rir? E se essa gente tiver
medo das suas dores amanhã? Toda a gente? Ela vai ver e rir...
Aquele enólogo vai aprovar esse bouquet estupendo e a gente
toda vai se perfumar... A gente?! Mas que gente?! A gente vai ver e
rir? Se eles tiverem medo da dor, vai alterar o sabor dos canapés...
Corram! Avisem a todos sobre as esperanças! Mandem eles virem com as
promessas debaixo do braço, além do traje a rigor. Onde está ver e
rir? Mas que diabo de banquete é este?! Ajeitem essas
gravatas-borboleta. Os portões já estão abertos? Vão abrir
urgente, o Tempo pode ser o primeiro a chegar... O fogo insiste, o
metal conduz, a água aquece. E se aquela dama estiver com
dificuldades com o itinerário? Essa ansiedade, essa expectativa...
Isso pode lhe alterar o perfume do vinho... Só há um anfitrião:
a sorrir-se, a abraçar-se, a beijar-se... Ao menos os risos
forçados ainda se sustentam... Até quando?... Onde ela foi ver e
rir? Mordomo Alex! Mordomo Petrius! Tomem tento nos convidados!
Poderia ter sido Charles... Madame,
oh-ho-ho-hos... Mademoiselle,
ih-hi-hi-his... Sintomas de alegrias... Monsieur,
com-licenças, eu-peço-desculpas, ah-ha-ha-has, eh-he-he-hes,
obrigadinhos pra lá, muitos-prazeres pra cá. Onde estão as vozes,
os burburinhos, os cochichos?!... Por falar em prazeres, o que é
melhor mesmo: a esperança ou o temor? E se ela pedir para ir ao
toilette? Onde ela vai? Onde ela foi? Ver e rir? Um banquete
de um homem só... Que danado de banquete é este, meu Deus?! Acho
que o bacalhau ficou um pouco salgado... Sonha com um futuro
agradável que melhora... A senhorita aceita uma dose de licor? Mas
se eu nem participei da ceia ainda... Tudo tem a sua primeira vez...
Está bem, vou aceitar só um pouquinho, porque o senhor sabe que eu
não estou aqui, não é mesmo?... Só há uma pessoa: a
servir-se, a conversar-se, a desconhecer-se... Já o salmão
ficou insosso... Nesse caso, cessa a dor que ele vai ficar no ponto.
Mas qual delas? Não aprendeu ainda? A maior é claro! Quanto maior a
dor estancada, maior o prazer; mas vai logo, pois não dá para
aguentar por muito tempo... E o vermelho do vestido? Já chegou?
Vermelho é a cor mais rápida! Pelo menos isso: era a promessa que
faltava para dar gosto às perdizes... Nos convites indicavam que era
para os senhores virem de smokings... Mas e se os Smokings
chegarem primeiro? Manda aguardarem no Bar e serve um aperitivo...
Quem sabe, com a espera, eles não se transformem no vestido
vermelho?... A água recebe, a temperatura aumenta, a matéria
agita. Nesse caso, é melhor contabilizar quantas esperanças e
quantos temores ainda temos para condimentar o restante dos pratos
principais. Não há problemas, os convidados trazem de sobra. Olá,
como vai? Caríssimos... Lindinhas... Minhas senhoras... Meus
senhores... Seria quase: Respeitável Público! Ladies and
Gentlemen! Isso já é exagero... Que banquete medonho é este,
meu Deus?! E os irmãos Verri? Confirmaram presença? Não sei se vão
tomar champagne... Seja o que for, que tragam as esperanças...
Cozinheiras e garçons atentos, ouvi um ruído!... Deve ter sido o
amarelo do vestido... Violinos, violas, cellos, sutilezas sonoras: le
Orchestre… Os músicos chegaram? E a moça? Está longa e
vermelha… Ah, certo, a espera dela... Não, a música... Dela?... O
temor vem de black-tie... Isso já sabíamos... Já avisei
para tomar cuidado com os singurales da vida... A moça já
envelheceu... Ver? Rir? Já não se sabe... Ninguém veio ver e
rir... Ninguém vem, venho Eu... Será um banquete de misantropos? Eu
só mais Eu... Eu sou Maiseu. Já é alguma coisa. Le misanthrope.
Agora sin, de singular… Sim, mas diga quantas eram as
esperanças mesmo? Não sei. Poquelin de novo? Nem isso… Só sei
que a soma de todas as dores é muito maior do que a dos prazeres.
Mas é tanto assim?... Aí você já está querendo saber demais...
Pergunta a eles... A matéria ferve, o vapor se espalha, a água
borbulha. Eles quem? Os convidados que não existem. Meu Deus!
Que banquete!? Droga, me queimei...
MENSÃO HONROSA NO CONCURSO NACIONAL DE CONTOS
“MIGUEL SANCHES NETO” EDIÇÃO 2011 - CATEGORIA NACIONAL