O Canto das Três Raças:
prolongamentos agremiativos em Pernambuco
por João Araújo
(
artigo publicado originalmente no Site BRmais: AQUI)
A convergência da diversidade étnica na formação cultural de uma nação é um presente concedido pelo passar do tempo. Se afirmo hoje que uma sociedade possui o privilégio por ter sido formada pela mistura diversificada de vários povos, não posso esquecer que tal processo certamente foi doloroso num tempo quando práticas como a escravidão, por exemplo, participavam da rotina dos cidadãos. Esse fato tenebroso da nossa história é inegável e deixou sequelas profundas. Quero focar, entretanto, as atenções no lado positivo, isto é, nas heranças culturais que tais etnias deixaram para as gerações futuras.
Cuidar bem das boas memórias e sementes culturais, semeá-las com carinho e fazê-las brotar os bons frutos que cada raça transportou no corpo e na alma durante os séculos é atuar na rica fertilização da sociedade; é uma missão de amor. No caso do Brasil, assim espero que sempre o seja. Nosso país deve se orgulhar da beleza e confluência das suas ricas origens. Em muitas regiões, mantém-se continuamente o germinar e o brotar dos traços culturais ancestrais. Das figuras do indígena, do africano e do europeu saltaram e saltam particularidades diversas que habitam os nossos dias, muitas vezes e infelizmente, sem a atenção merecida. Irei lançar essa reflexão sobre o nordeste brasileiro.
Considero especialmente o estado que já foi um dia conhecido como o Leão do Norte. Lá em Pernambuco, as três raças também encontraram prolongamentos peculiares na coletividade de diversos grêmios carnavalescos como forma de expressão cultural. Hoje, porém, apesar de um tipo de agremiação fazer referência cultural a uma determinada linhagem, as suas alas são compostas por “desfilantes” de múltiplas origens étnicas, dando, assim, o colorido humano característico do carnaval, como sempre deve ser. Apesar de o catálogo de agremiações carnavalescas ser muito mais vasto, limitar-me-ei aqui a destacar apenas três exemplos delas, fazendo, assim, uma ligação com cada um dos grupos étnicos acima citados.
O Indígena
O meu ponto de partida é, portanto, o caso da cultura indígena. Esta ganhou um prolongamento coletivo no Folclore pernambucano através de agremiações chamadas Caboclinhos ou Cabocolinhos. Aí, homens e mulheres trajam fantasias compostas por saias, cocares, tornozeleiras, colares, pulseiras, braceletes e cintos com chocalhos presos, todos manufaturados com ricas e coloridas penas. O repertório que se toca em tais grupos se inspira em sonoridades florestais primitivas. A base rítmica utilizada é composta por toques percussivos de tambores e preacas, estes últimos sendo instrumentos de percussão em forma de arco e flecha que emitem estalos secos de madeira. Também se utilizam flautins de taquara, costurando melodias agudas e alegres em cadências distintas, das quais se destacam o canto guerreiro e o perré.
No carnaval, muitos desses grupos desfilam pelas ruas do Recife presenteando os olhares atentos da multidão com um espetáculo de exuberância e lépida alegria. Assim, a cultura indígena encontrou uma forma alternativa e diferente de se estender e de expressar os seus costumes, crenças e lendas, que, aliás, não são poucas. Entre os vários mitos, destacam-se a lenda do Boto cor-de-rosa (o galanteador), do Curupira e da Caipora (dois dos guardiões das florestas), do Boitatá (a serpente de fogo), a lenda da Mandioca e a lenda da Iara (a mãe d'água).
Em geral, uma mitologia vai sendo passada de boca em boca através das gerações, como uma espécie de bastão da tradição, e, nesta corrida de transmissão oral, as histórias vão sofrendo alterações e variações ao longo dos anos. No caso da lenda da Iara (formada pela composição das palavras y, água, e ara, senhora), por exemplo, diz-se que, numa de suas primeiras versões, referia-se a um homem-peixe que atacava pescadores e os levava para o fundo dos rios. Só a partir do século XVIII, uma versão feminina da mulher encantada e sedutora passou a vigorar no imaginário popular, que, por sua vez, também já encontra influências trazidas do universo mitológico das sereias.
Controvérsias à parte, o que quero destacar aqui é a manifestação agremiativa e o estilo musical de base indígena, os Caboclinhos, que se fizeram impor no ambiente carnavalesco e carregam em si a expressão maior da cultura desta etnia em seus desfiles pelas ruas da cidade.
Carijós, Canindés, Taperaguases,
Caboclo Tupy, Tapirapés,
Caboclinhos Tabajaras,
É ela a mulher, Senhora das Águas,
É ela a mulher, Ôô ô Iara...
Vem lá do Norte
O negro dos olhos
Cabelos e lábios de mulher
Deusa tão forte
Nas águas escuras
Caboclo se entrega aos seus pés
É guardiã
Dos rios, da mata,
Se enfeita com a flor do mururé
Ela é irmã
Do fogo que arde
No sangue da presa que lhe quer
Sirena chamou
Marujo sumiu
Sereia cantou
Iara levou
O tapuio pro rio
O canto que essa mulher detém
Toda floresta não será capaz
De suportar, de tanta magia,
Aracuã vadia, já não canta mais
Quando ela sai, leva mil reféns
No igarapé, sobressalta a paz,
Céu escurece e o vento esfria
Jassanã se avia, capiuara atrás
Iara é lenda que do povo vem
Mora na fé de todo rapaz
De se perder nessa febre estranha
Da pele castanha que a morena traz
O Africano
Agora, considero o segundo caso a que me proponho neste artigo. Em Pernambuco, no que diz respeito aos prolongamentos carnavalescos do africano, há um gênero agremiativo, entre outros, que traduz essa cultura através do poder estrondoso e arrepiante dos tambores: o Maracatu Nação, também conhecido como Maracatu de Baque Virado. Cultura secular, em seus cortejos pelas ruas, o Maracatu representa o universo da nobreza africana de tempos remotos, como os reinados do Congo. O grupo é diferenciado em alas que refletem as cortes imperiais da África do passado. Exemplos desses integrantes legítimos são o rei, a rainha, os ministros e embaixadores, as damas da corte e o porta-estandarte. Há também as damas do paço, que carregam nos braços e exibem ao público as calungas, bonecas negras enfeitadas, simbolizando os orixás, tais como Xangô ou Oxum. Em Pernambuco, há muitos Maracatus em atividade, a citar alguns deles: Nação Leão Coroado, Nação Porto Rico, Nação Estrela Brilhante de Igarassú, Nação Estrela Brilhante de Recife e Nação de Maracatu Cambinda Estrela. Um dos mais antigos foi o Maracatu Elefante, fundado em 1800, e que teve a famosa Dona Santa como sua rainha.
Os Maracatus são um espetáculo rico e instigante, muito disso se devendo à força rítmica e imponente da ala dos batuqueiros. Suas viradas e levadas são proporcionadas principalmente pelas alfaias, grandes tambores adornados e coloridos confeccionados artesanalmente. Às alfaias, juntam-se, ainda, outros instrumentos percussivos, como os xequerês, os gonguês, as maracás e as caixas. A polirritmia se inicia, muitas vezes, após o Mestre puxar uma loa, que é a parte de um verso musical cantado sem acompanhamento instrumental.
Por volta de 1960, em Recife, houve um movimento para dar mais espaço à expressão africana e se criou a chamada Noite dos Tambores Silenciosos, que, desde então, decorre durante a segunda-feira de carnaval no Pátio do Terço, no Bairro de São José. Nesta cerimônia de sincretismo religioso, os Maracatus se reúnem e realizam apresentações coletivas até que, em determinado momento, os tambores silenciam, as luzes do pátio são apagadas e todos juntos realizam uma oração em iorubá.
Segunda-feira vai arder lá no Pátio do Terço
Oração de tambor
Segunda-feira vai surgir do metal no gonguê
Som estalado de amor
Segunda-feira vai tremer na virada da caixa
A loa que o Mestre puxou
Segunda-feira vai bulir cabaceiro amargoso
Na mão que Calunga jogou
Calunga, saculeja esse xequerê
Que a pele da morena, assim, suará
Não esqueça: Calunga bom tem que remexer
Sem perder a toada que libertará
O Europeu
Para finalizar esse breve passeio pelos prolongamentos étnico-culturais no carnaval pernambucano, retornemos ao fim do século XIX e consideremos predominantemente os desdobramentos da influência europeia lusófona no nordeste brasileiro. Naquela época, nos bairros do Recife, havia diversos grupos de músicos seresteiros que se reuniam constantemente para realizar os seus saraus, serenatas e recitais em família. Por outro lado, da tradição religiosa portuguesa, a sociedade já estava acostumada às práticas das procissões e do pastoril, um folguedo europeu relacionado ao Presépio e que se compõe por meio de danças e músicas, sejam elas religiosas ou profanas. Da confluência desses movimentos, por volta de 1920, nasceram os Blocos Carnavalescos. Mas, atenção! Entenda-se aqui que tais agremiações não têm nada de parecido com os blocos ou, muito menos, com os trio-elétricos como os entendemos hoje. A música dessas agremiações era proporcionada por uma orquestra de pau-e-corda formada por violões, bandolins, violinos, flautas, clarinetes de ébano, surdos e pandeiros, entre outros instrumentos. Além disso, um coral feminino ficava responsável por propagar os textos dos frevos-de-bloco, embebidos de muito lirismo romântico e saudosista.
Os Blocos Carnavalescos também viriam trazer um marco social significativo para a comunidade, pois permitiram a inclusão feminina e sua presença mais segura na participação do carnaval de rua. Naquela época, o carnaval fora dos clubes carregava muitos traços de violência devido ao desconfortável jogo hostil dos mela-melas, das contendas constantes e das desavenças, heranças essas ainda do truculento entrudo português. As ruas não eram nada convidativas para as esposas, irmãs, primas e filhas dos seresteiros. Sendo assim, a solução da vez trazida pelos Blocos Carnavalescos foi o uso do famoso cordão protetor, que era carregado pelos homens, salvaguardando as suas queridas companheiras da agressividade exterior.
O movimento dos Blocos Carnavalescos Líricos, como são denominados hoje, teve muitos altos e baixos ao longo dos anos. Entretanto, o estado atual, após a virada do milênio, é de grande esplendor. Hoje, há mais de cinquenta agremiações desse tipo fundadas em diversos bairros da capital pernambucana e cidades adjacentes. Cada qual é formada por uma quantidade média de setenta ou oitenta componentes. Desfilam pelas ruas do Recife, promovendo um espetáculo visual e sonoro de lirismo sem igual. A grande apoteose é um evento chamado de Encontro dos Blocos Líricos e ocorre no Marco Zero do Recife, na segunda-feira de carnaval. Vale aqui citar os nomes de algumas dessas agremiações: Um Bloco em Poesia, Eu Quero Mais, Flor Camará, Amantes das Flores de Camaragibe, Flor do Eucalipto de Moreno, Cordas e Retalhos, O Bonde, Artesãos de Pernambuco, Flor da Lira de Olinda, Banhistas do Pina e Bloco das Ilusões, entre tantos outros.
Neons, banhando o espelho desse rio marrom
De saia longa em vibrações crepom
Trocai a vossa fria luz neon
Pelo calor dos nossos corações
Soltai a branca voz das procissões
Tocai a rubra corda dos violões
Vesti a manta azul das tradições
E a verde-glória luz da multidão
A gloriosa luz da multidão
A gloriosa luz da multidão
A gloriosa luz da multidão
A Mistura
Essa é uma pequena parcela das nuances do carnaval de Pernambuco. Nesse estado, muito do carnaval é feito pela sua própria gente, um povo lutador de singular irreverência, criatividade ímpar e humor aguçado, que muitas vezes trabalha o ano inteiro para poder colocar a sua agremiação nas ruas. Os milhares de turistas espectadores que lá vão têm, portanto, a possibilidade de assistir a uma autêntica expressão popular, uma espécie de teatro ao ar livre, onde a sua gente faz das ruas e avenidas o seu palco para encenar e expressar a riqueza das suas heranças étnico-culturais.
Em cada um dos movimentos populares pernambucanos aqui citados, isto é, o Caboclinho, o Maracatu e o Bloco Carnavalesco Lírico, a mistura prevaleceu. Com esta breve exposição, não pretendi dar o monopólio ou o domínio do indígena, do africano ou do europeu sobre cada um dos seus respectivos movimentos agremiativos, muito menos desconsiderar o influxo de uma cultura sobre a outra. Pretendi, entretanto, destacar que em cada uma dessas manifestações coletivas carnavalescas houve, em sua origem, uma predominância e influência étnica clara que vive a brilhar hoje durante, por exemplo, os festejos de Momo. As agremiações são, assim, expressões legítimas e prolongamentos culturais dos seus indivíduos, que se realimentam dinamicamente com o passar do tempo e pulsam o colorido múltiplo do imenso mosaico social. Tudo isso vai sendo transmitido de geração para geração. Trata-se de uma gostosa e divertida lição de história e de amor pelas raízes da nossa gente.
Artigo publicado originalmente no Site BRmais:
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